DESVIO
É certo que desfaço
A matéria presa do retrocesso
Transformo a cada passo
Ordens escassas do universo
Segue minha alma tranqüila
Esquivando-se do arranhão profundo,
Espinho espetado no osso
Urgente jaula aberta
E de fora permaneço
sem remorso.
Márcio Jorge
ilustração: Marc Chagall
Karel Appel
CONTORNO Parece confuso
Albergar os pensamentos mais límpidos
Ando no nebuloso leito do preciso
E o desgosto degolado
É deveras escondido.
Peleja grata
Por mais ambígua que pareça
Sou alvo de mim mesmo
Salvo, o que não vejo. Márcio Jorge
Salvador DaliHORAS CERTAS
Visito os fatos aqui presentes
Solto, ainda estou para gritar
Buscar o caminho revolto
Decifra as coisas guardadas
no paiol do tempo de guerra santa.
Da varanda, visito as horas que precedem
acontecimentos avulsos:
A escuridão e o gozo,
O amor degustado com requinte,
Luas, constelações, delíquios e um céu de poesia,
A selva e a barbárie,
O jornal pingando sangue no corredor de casa,
A correspondência violada,
O cigarro, a cigarra, os arquivos empoeirados,
A oferta da mão em falta!
Continua o tempo de sentimentos falecidos,
A história conduzindo ao crime,
Muros de concreto separando os líquens,
Perdeu-se a simbiose?
São horas certas para desaguar o rio sujo,
o caldo sujo, a fonte indesejada. Visito a cidade ao som das melodias:
Assovios de balas,
Cânticos de fiéis,
Cantigas de roda,
Funks de guetos,
Reggaes de Marley,
Choros de fome,
Sinfonias de Bach,
Batuques, batidas, bandolins...
Se é certo,
Ou mero desatino
Espalho-me pela madrugada
Ser inocente,
É viver sem destino.
Márcio Jorge