26 de dez. de 2023

PAIOL

 

Com um mapa nas mãos

sentiu que alcançaria breve

o paiol de suas incertezas

 

Em pleno dia de sol

os pensamentos permaneceram ali

trancados de medo

 

Foi observando

o quanto se afastava de si

ao deixar a chave escondida

 

Como pássaro em armadilha

debateu-se sozinho

até descobrir o mundo

 

Seguiu intenso e feliz

na frente um farol

e um estranho desejo de voar


O POEMA E A PEDRA

 

No dia

em que as horas passaram

sem vida

viu crescer o poema

na pedra

ambiente inóspito

para as palavras

 

O dia morreu

 

O poema e a pedra

vivos

continuam


19 de dez. de 2023

METAMORFOSE

 

Ora ave

ora gente

transmutar

de um ser

para o outro

faz teu corpo

ondular

na exuberância

do céu

 

Pertinho

das águas

quis ser peixe

também

talvez se vestir

de sereia

para cantar

Odoyá

 

Seu vestido de ave

gente

peixe

rodou por inteiro

e encheu

de rio

o seu peito

de mar


UM BRINDE

 

Há dias em que não sabemos

plantar nossa própria luz

 

Há dias em que só colhemos noite

no vão do peito arredio

 

Há dias em que as palavras

não mais se encaixam

como peças de um quebra-cabeça

 

Há dias em que construímos muros

reviramos casas

abraçamos dores

 

Nesses dias recomendo

se vestir de brisa

criar fôlego

e brindar ao silêncio

 

Há dias em que a vida já não basta


ONDE ESTOU?

 

Olho-me

aqui dentro

como folhas

debruçadas

na pele áspera

do chão

 

Ser fervura

onde o frio congela

a mente

e o vento ameniza

o coração

 

Onde estou?

olho-me

e já não me vejo

aqui

 

15 de dez. de 2023

SENTENÇA

 

Espero-te

até quando

for possível

contar o tempo

 

Espero-te

até a saudade

virar cinzas

até a palavra

desmontar o refúgio

e o poema

não se deitar

ao meu lado

 

Espero-te

no lugar

que regressas

para matar

tua sede

e respirar

o puro ar

que te entrego

 

Espero-te

onde o amor seja

a sentença

e você, a condenada    


11 de dez. de 2023

VENTANIAS

 

Tenho seguido ventanias

na solidez do chão

deslizo sobre as próprias pegadas

 

No riso do céu

flutuo imenso

e escancaro toda manhã

que me oferta o sol

 

Para espalhar milagres

é preciso ter asas

de anjo


SACO CHEIO, MUNDO VAZIO

 

Sim

sabemos

que pesa

esse mundo

           urgente

 

De tantas

metas

planos

setas

fatos

formas

cenas

vírus

sapos

     a engolir

 

Sim

sabemos

que pesa

um saco

cheio

e um mundo

               vazio

 

A MARGEM DO SOL

 

No espelho

Destes olhos

Que se iluminam

A cada lembrança tua

Apareceste assim

Acariciando a margem do sol

Que aprisionaste

Com tuas próprias mãos


26 de nov. de 2023

CORTANTE

 

A noite observa

em meu quarto

um poema em formação

 

Juntos

eu e o poema

desenhamos um girassol

 

São flores

o que espera

o olhar sereno

da madrugada

 

São dores

o que atravessa

a lâmina afiada

do poema


A PONTE             

 

No deserto

onde não tenho voz

trago de mim

o indizível

 

No mar

onde não tenho braços

trago de mim

a correnteza

 

Na estrada

onde não tenho olhos

trago de mim

a miragem

 

No dia

onde não tenho alma

faço nascer

o fogo


EM OUTRO LUGAR

 

No corpo asilo

um ímpeto

de furar a casca

 

Como um desmaio

cai uma estrela

no rosto

 

Lentamente

cresce

em outro lugar

 

O pedaço

do rosto

a casca

desprendida

do corpo


15 de nov. de 2023

 VARANDA

 

Um sorriso de rio

desmontou em água,

uma nuvem

 

O sossego de mata

revelou o abrigo

das pedras

 

O profundo

em mim renasce

nas cores

da natureza infinita

 

Faz substância de crescer

raiz

casco

folha

asa de joaninha

 

Há luz de iluminar

colina

poça

ribanceira

passo de inseto

 

Faz nascer cheiro

de primavera

 

                 Uma rosa 

na varanda do mundo

 

SER OU NÃO SER?

 

Ser a brancura

de sal

e desvendar

a viva água do mar

 

Ser árvore

de floresta

e sustentar

os frutos do destino

inconstante

 

Ser manifesto

de motim

e consumir

as palavras ancoradas

no porto (inútil)

da poesia

 

Ser ou não ser?


19 de out. de 2023

SOTERRADO

 

Veja-me aqui

como pássaro preso

em gaiola

 

Veja-me aqui

adormecido desse mundo

sujo

 

Veja-me aqui

sem a força motriz

dos dias

sem a vontade de entender

o conflito

 

Bomba

morte

soluço

destroços

 

Veja-me aqui

soterrado pelas cinzas

que tão longe

estão


ATÉ O FIM

 

Nascer

Crescer

Sonhar

 

Seguir

Fazer

Voar

 

Plantar

Saber

Fincar

 

Morrer

Transpor

Chegar

 

Sem atalhos

no caminho 


 A SOLIDÃO NÃO ESTÁ SÓ

                   Inspirado na leitura do poema “Quarto Só” de Alejandra Pizarnik

 

Demora

o que te consome

nesse quarto só


Tua fome

de mastigar ausências

transforma fissura

em janela de contemplação

 

Rompe as paredes 

desse quarto


Surpreenda

a presença que deseja


Surpreenda

a presença que te espera


TRAVESSIA

 

Atravessamos o dia

Inteiros como uma rocha

Você nos arremessou no silêncio

E o som que saia de nós

Derreteu


18 de set. de 2023

TEU VERSO

 

Ao abrir um livro de poemas

debrucei sobre o verso

que chamei de teu

 

Não falava de amor

nem de lua

nem de flor

 

Tudo isso já era teu

assim como o verso

que chorei não ter escrito

 

Enquanto embalava teu sono


1 de set. de 2023

SETEMBRO

 

Chegou

o dia

que esperava

 

O mês

que te enfeita

com flores

amores

e corações

cor-de-rosa

 

Chegou

setembro

abre

a janela

e traz

o teu sorriso

de volta